quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Esporte da mente exige bem menos estratégia de seus “robustos” atletas


Jessica Soares e Jessé Henrique

        Não basta apenas sorte, o pôquer exige concentração, análise e muita, muita, reflexão. Os jogadores, a cada rodada, se tornam verdadeiros estudiosos da mente humana. Agem como se fossem psicólogos. Observam a respiração e a forma do oponente mover as fichas. Verificam se em torno das axilas do adversário existem marcas de transpiração na camisa para, com isso, identificar sinais de nervosismo. Depois, vem a parte reflexiva: meu oponente está nervoso porque não consegue controlar a felicidade, ou estaria com medo? A preocupação é compreensível. No jogo pode-se apostar desde dinheiro até a dignidade do sujeito.

       Mostrado com elegância no cinema, ter habilidade para saber induzir o adversário a apostar o maior número de fichas possível é característica imprescindível de um bom jogador. Dentre as diversas modalidades de jogo, o mais famoso é o Texas Hold’em.
A legalidade do jogo

        Apesar de estar entre os mais famosos entretenimentos de cassinos no mundo e ser amigo íntimo das máquinas caça-níqueis, pôquer não é um jogo de azar. Em 2010, foi aclamado como esporte em assembleia da Associação Internacional dos Esportes da Mente (IMSA - International Mind Sports Association), localizada na França.

        No Brasil, o jogo é ilegal a partir do momento em que as apostas são feitas em dinheiro, caso contrário a polícia não barra a iniciativa, tampouco a criação de federações. Para o superintendente do 2º Distrito Policial de Curitiba, Emerson Antônio Félix, as investigações para as jogadas consideradas ilegais continuam dando trabalho à polícia. “Quando a denúncia chega à delegacia, é encaminhada imediatamente ao responsável pelo distrito. Ele designa uma equipe de investigação para averiguar a veracidade do fato”. Em relação ao tempo, tudo depende do trâmite. Na maioria das vezes, não costuma demorar.

        Apostar dinheiro, não pode. Mas os praticantes juntam uma grana alta para participar dos torneios realizados pela Confederação Paranaense de Texas Hold’em. Para se inscrever nos torneios, os interessados precisam desembolsar entre 200 a 300 reais. Jhonny Castro joga duas vezes ao mês e vê com naturalidade a taxa de inscrições. “Os torneios privam pela honestidade e competitividade do jogo, então o valor da inscrição é fixo e a quantidade inicial de fichas do torneio para cada jogador também, assim, não é possível uma pessoa se beneficiar de um maior poder aquisitivo para comprar mais fichas”.

         Por estar no lugar errado, por anos foi visto com preconceito. Algumas pessoas ainda repudiam a ideia de compará-lo aos chamados jogos da mente”. “Apenas argumentar que é um jogo de estratégia como o xadrez não é o suficiente. É necessária uma campanha de conscientização, para colocar na cabeça das pessoas o fato de ser um esporte. Assim, cada vez mais, elas se interessarão pelo jogo”.
 
Jogando Texas Hold’em

         O ambiente não é o mesmo mostrado nas cenas dos filmes hollywoodianos. Fomos jogar na casa de um amigo chamado Leleco, ou, como o pai e mãe dele preferem chamá-lo, Wander Luiz.

        Na casa de Leleco não havia nada daquela imagem dos cassinos de Las Vegas ou Montevidéu. Três prateleiras e alguns assentos improvisados para os jogadores são os móveis. Usamos feijões como aposta – mas porque não tínhamos ficha e não porque acreditamos que é isso que se disputa nos grandes cassinos do mundo. Nós cinco sentamos ao redor de uma mesa oval de madeira, parcialmente corroída por cupins. O crupiê, revezado a cada rodada, distribuiu as cartas. Um rapaz à esquerda, chamado Pezão – sim, talvez este realmente fosse o nome dele -, foi o primeiro a receber o carteado. Foram dadas duas cartas aos jogadores e logo cada integrante - inclusive eu - precipitou-se em protegê-las da melhor maneira possível. Os olhares de 180 graus saíam das cartas e contornavam a mesa de ponta-a-ponta. Parecíamos robôs: frios, sem expressão. Apenas um dos jogadores, menor de idade, chamado Bruno Moura, parecia rir como um bobo. Estaria blefando? Ansioso? Não sei. Com muito esforço, depois de observar um tempo, consegui identificar leves insinuações de sorriso cá ou acolá.

       Neste esporte chamado pôquer o crupiê tem papel fundamental. Ele não pode errar. Deve agir como se fosse um médico executando uma operação arriscada, porque qualquer deslize é imperdoável, mesmo se o prêmio for feijões (afinal, como será preparada a feijoada do sábado?). Com bastante atenção ele termina a distribuição das cartas, conduz a primeira rodada de apostas e executa o flop (três cartas com o lado principal voltado para a mesa). Olhei os adversários... Momentos depois foi feita nova rodada de apostas para as cartas do flop. Todos os cinco analisaram os resultados e ponderaram se era conveniente continuar ou não no jogo. Alguns expiraram profundamente, outros coçaram a barba, passaram a mão na nuca. Dois deles desistiram, Anderson da Silva e Leleco: o segundo e o terceiro, a contar da esquerda para a direita.           

         Restaram eu, Pezão e Bruno. Iniciaram-se as apostas do turn, a quarta carta colocada com a face para baixo. Repete-se o procedimento. Desta vez ninguém desiste e as apostas aumentam. É hora da penúltima etapa: o “bolo de apostas” está gigante e todos o querem. Novas apostas ocorrem e as expectativas para a virada da quinta e última carta da mesa, o river, são enormes... O silêncio na mesa é sepulcral, pode-se ouvir o som monótono dos ponteiros do relógio na parede... Tic... Tic... Tic... Na última aposta, o ritmo do jogo fica lento, os jogadores sentem dificuldade em esconder o nervosismo.                            

      Os semblantes estão enrugados. Mostram-se pensativos, umedecem os lábios com a língua ou engolem em seco. A hesitação na hora de apostar é cada vez maior e Bruno, o adolescente, desiste. Ficam no jogo apenas eu e Pezão (ele já havia ganhado os dois últimos turnos).

       Eu e ele não nos encaramos.

       Eu sabia jogar razoavelmente... Achei, naquele instante, um par de vermelhos nas mãos suficiente. Talvez estivesse certo. Meu pensamento lógico foi o mesmo usado por Edgar Allan Poe num de seus contos sobre o lançamento de dados, o Mistério de Marie Rogêt. Resolvi aplica-lo ao pôquer. Eis o raciocínio: “Nada, por exemplo, é mais difícil do que convencer um leitor comum de que o fato de haverem saído dois seis seguidos num jogo de dados é coisa mais do que suficiente para fazer uma grande aposta de que não sairá nenhum seis na terceira tentativa”.  Fez-se silêncio. Abaixaram-se as cartas. Houve apenas um sorriso, o do meu adversário. Ele tinha uma dama de espadas e um às de ouros: estas cartas, combinadas com as da mesa, formaram o chamado Full House, consagrando-o vencedor.

       Foi curioso observar a frustação dos outros três jogadores mais a minha, contrastadas à alegria de Pezão, ganhador de todos os feijões. E o mais interessante: quem desistiu primeiro, se frustrou menos; eu - o último - muito mais. Mais uma vez comeria apenas arroz na hora da janta.
  
    Estigmas à parte, para o pôquer crescer como esporte é preciso que os próprios adeptos sejam mais receptivos e menos desconfiados. Durante nossa reportagem, nos deparamos com diálogos vazios com respostas das mais resumidas possíveis. Do tipo, “não quero me comprometer”. Assim, estamos longe de ver o pôquer, jogado de maneira legal, como realidade possível. Faltam argumentos e estratégias receptivas dos jogadores, algo tão exigido pelos esportes mais populares.

Não é autoajuda! É psicologia do esporte!

 Da superação da baixa autoestima à vista grossa sobre a dedada no rabo



Por Ramon Voltolini, Carlos Eduardo e David Musso

Inspire, com calma. Olhe para o ginásio e tire de foco o público selvagem roedor de unhas, ávido por uma virada brusca por sobre teu adversário. Relaxe. Erga a cabeça. Perceba todos os trejeitos do oponente e intime-o com os olhos. Com a espada empunhada e, num ataque, diga “Touché!”. Vestido de branco, Alex Campos, 22, se prepara para os treinamentos de esgrima. O rapaz, a cada espadada mais suado, simula combates desenrolados num limite apertado de tempo, sob pressão duma derrota iminente. Ansiedade e concentração ficam de mãos dadas durante a luta; o aperto mais sutil dum punho sobre o outro pode condenar o equilíbrio psicológico do atleta; derrubando-o, ou não.

O condicionamento mental dos desportistas tem sido assunto primordial das pautas dos clubes de futebol, dos cronogramas das aulas de Educação Física, dos praticantes de esgrima. Da mídia. Na Alemanha, por exemplo, após o suicídio do goleiro Robert Eike em 2009, o Sindicato dos Jogadores de Futebol Alemão (VdV) começou a exigir um posicionamento mais profissional dos clubes frente à psique dos atletas: todo time deve, ou deveria, contratar um especialista no tratamento psíquico dos jogadores. Aqui, em setembro do ano passado, o Fantástico posicionou uma câmera exclusiva sobre Neymar. Mesmo sem saber, o topetudo foi posto no divã. Diante das fantásticas câmeras da corporação Globo de televisão, um perfil completo do menino foi traçado. Por ficarem vulneráveis aos estímulos incessantes da indústria jornaleira e da vida cotidiana, os atletas variam entre estados de concentração e euforia.

A psicologia do esporte, ramo que se entrelaça cada vez mais no cotidiano dos atletas, trata de compreender as teorias psicológicas voltadas às necessidades de cada categoria desportiva e aplicá-las efetivamente na vida dos atletas. Luiz Henrique, 19, jogador profissional de futsal pela equipe do Três M/Stark, conta com uma sessão individual psicológica por mês. A cada bimestre, o time se reúne numa espécie de “terapia em grupo”. “Não admito que me xinguem ou que usem de malandragem por cima de mim”, diz o rapaz ao se referir a gracinhas que os oponentes frequentemente fazem durante as partidas. “Alguns jogadores chegam a enfiar o dedo no rabo do outro durante os jogos. Isso desconstrói o atleta”. Para manter a sanidade diante das provocações, Luiz afina os ouvidos e pratica os conselhos ditados pelo psicólogo do clube; o foco desses auxiliares, na realidade, está no que acontece no “para-além-da-quadra”.

Tente encontrar um meio termo entre as vidas pessoal, familiar e social. Preze pelo equilíbrio mental. Divida o tempo do dia em partes, uma para cada tarefa. Você tem de clarear a visão e selecionar os pontos de foco.  Elenque-os. Em quadras mais modestas, como na do EJA (Educação para Jovens e Adultos) de Rio Branco do Sul, a psicóloga Eliane Dias Ferreira dá a aos alunos orientação semelhante à profissional. A falta de motivação, baixa autoestima e as dificuldades dos alunos em seguir os vértices disciplinares da matéria de Educação Física levam grande parte dos estudantes a bater o pé frente à prática de exercícios físicos. Por transcender os limites estreitos das quadras das escolas, os efeitos desse tipo de psicologia afetam os alunos também dentro das salas. O desenvolvimento da atenção, da memória, do raciocínio lógico e da motricidade são consequências colaterais desse tipo de abordagem psicológica.

O meia-atacante do Coritiba, Rafinha – hoje de pavio mais comprido –, também já foi paciente dessa categoria de tratamento. No ano passado, o atleta alternava ótimas atuações em campo com idas mais cedo ao chuveiro do time. Ainda em disputa pela série B do Campeonato Brasileiro de 2010, o jogador mostrava-se hostil durante as partidas: até o mais bobo dos motivos fazia Rafinha descer a bordoada no primeiro infeliz. Diante da situação inconstante do atleta, a diretoria do Coritiba recomendou a Rafinha sessões terapêuticas com a psicóloga do clube, Flávia Foccacia. Os resultados foram notados após seis meses de tratamento: cartões e expulsões não são mais constantes na vida do jogador. “Me sinto feliz dentro de campo e, lá, sou como um líder. Fora dele [campo] sou outra pessoa, fico quietinho no meu canto”. Com o uso da psicologia, o espírito de equipe e o desejo de fazer o time todo prosperar tomaram o lugar, ou, pelo menos, “encaixotaram as bombas” do temperamento explosivo do meia. Rafinha superou a mesquinhez das provocações alheias; passou por cima da baixa autoestima e, até onde se sabe, chega a fazer piada com essa tal história da “dedada no rabo”.

O para-choque é o meio-fio no carrinho sem freio


Por Allan Scheid e Denis Barbosa

O sol esquenta o asfalto em mais uma tarde na antiga estrada da Graciosa. É o clima considerado ideal pelos atletas do street luge. Em meio aos carros que passam na rodovia eles começam a vestir os uniformes. Munidos com equipamentos de segurança, a primeira vestimenta colocada é o macacão. Não precisa ser um bom observador para perceber as marcas de asfalto e as costuras que desenham o alto risco. Na listagem dos esportes radicais mais perigosos, o luge ocupa a quarta posição.

Enquanto os lugers ajustam os preparativos finais, Marcos da Costa, atleta de sledge, uma versão mais light do luge, percorre o trajeto de carro vistoriando as condições da pista. Uma pequena pedra é o suficiente para fazer um grande estrago. Chegando no ponto final do trajeto, a estrada da Graciosa é fechada. Via rádio, Marcos da Costa informa Mario Jardim: “tudo ok, drop liberado”.

Mario, pioneiro do esporte na capital paranaense, abre um largo soriso e comunica os companheiros. Luvas, cotoveleiras, joelheiras e o capacete completam o traje. No meio de cinco marmanjos, uma pequena figura chama atenção. Trata-se de Marcos da Costa Filho, apelidado de “Litle Marck” pelo pai coruja Marcos da Costa.

No minuto que antecede a descida, o garoto de 9 anos fica de joelhos sobre o equipamento. Através da viseira erguida é possível flagrar o olhar compenetrado na primeira curva. Os dinossauros do esporte falam sobre o frio na barriga.  Corajoso “Litle Marck” diz não ter medo.

A largada é alavancada com os braços. O preparo fisíco é fundamental para atingir os extremos da velocidade. O corpo do atleta é o motor, o equilíbro é a aerôdinamica nas curvas, inclinando conforme o necessário como nas corridas de motovelocidade. O freio é controlado pelos pés, utilizando um tênis especial que, com borracha de pneu acoplada na sola, evita o desgaste.

O percurso escolhido no dia durou em torno de um minuto e meio. No fim de cada drop entra em ação novamente Marcos da Costa. Com cordas amarradas em um suporte traseiro no carro para rebocar os pilotos ao ponto de partida. Sentados sobre os luges, o retorno é o momento de descanso no treinamento. Dependendo da disposição dos atletas o procedimento é repetido até dez vezes no dia.
 Não é comum ouvir histórias sobre vítimas fatais. O posto de quarto lugar entre os esportes mais perigosos é justificado pelos dois centímetros entre o corpo do piloto e o chão em velocidades superiores a 100 km/h.

Do asfalto para o gelo

O sonho de representar o Brasil nos jogos olimpícos não é possível no street luge. A modalidade só tem espaço nas Olimpíadas de inverno, onde é batizada de luge no gelo.

 Alexandre Cerri, 23 anos, inicia uma nova missão, representar o Brasil nos jogos olimpícos de 2014. Em novembro o atleta irá trocar o verão brasileiro pelo rigoroso inverno europeu. A preparação já começou e, bem humorado, Cerri contou que não usava blusas nas manhãs geladas do inverno curitibano, tudo para ir se adaptando ao clima castigante. Vai ser o primeiro contato com o luge no gelo. Mesmo assim, não espera ter dificuldades para se adaptar ao esporte.

 “O Luge é um hobby profissional”

A definição de Élcio Monteiro expressa as dificuldades enumeradas pelo atleta. Falta de patrocínio, pouca visibilidade na mídia, manutenção dos equipamentos e viagens para competições nacionais e internacionais. Enfático, define a motivação de praticar o esporte: “não é por dinheiro, é por amor”. E acrescenta: “se parar para pensar na grana, você não sai de casa”. 

Porque os repórteres não praticaram o esporte

Não foi possível realizar um drop, nós bem que gostariamos de encarar as descidas da Graciosa e se divertir, porém ao conhecer o esporte de perto percebemos o quanto ele é arriscado. Somente profissionais tem o preparo necessário para realizar tal tarefa.
Aos iniciantes fica a recomendação de interagir com os integrantes das equipes de luge de Curitiba e pegar as dicas sobre o esporte. As pistas do Parque São Lourenço e do Guabirotuba são ideais para começar.

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Sobre esportes # 4: Kenneth Tynan vê as touradas, resenha de Letícia Gabriele

Antonio Ordóñez

 (em TYNAN, Kenneth. A vida como performance. SP: Companhia das Letras, 2004. p. 105-119)

A coletânea de descrições sintéticas que compõe o livro “A vida como performance” do crítico inglês Kenneth Tynan, remetem simultaneamente a sensação de acidez e delicadeza ao descrever os personagens. Na definição do toureiro Antonio Ordóñez, Tynan não inicia a narrativa de maneira objetiva e linear, mas sim, construindo todo o universo que rodeava o toureiro através de assimilações e comparações com outros grandes nomes da tauromaquia.

“Os tambores da afición, estavam todos batendo em uníssono pela primeira vez em onze anos. Não batiam por Luiz Miguel, mas pelo jovem andaluz chamado Antonio Ordóñez...”. Dessa forma, Tynan dá início à composição do personagem que matou cerca de 150 touros. Segundo o autor, Antonio “era propenso a ataques de apatia” e matava com gentileza, enfrentando os touros “com uma generosidade que fazia deles colegas, não inimigos”.

As metáforas e comparações são artifícios bastante presentes no texto de Tynan, e não são raras as vezes em que o autor compara o toureiro a artistas de outras áreas com o intuito de descrever sua maneira de lutar. Considerado por Ernest Hemingway “o maior toureiro que já viu atuar”, Tynan utiliza a opinião do escritor como um ponto de partida para o paralelo traçado entre Antonio Ordóñez e Pedro Romero, um dos personagens centrais do livro “O sol também se levanta” de Hemingway, cuja personalidade é baseada em Cayetano Ordóñez, pai de Antonio. Assim, a história de Cayetano é incorporada a história de Antonio, ambos corajosos e desmedidos. Coragem essa que é posta de lado por Cayetano, “um veterano devastado e exaurido” que aos 55 anos sobrevive de uma pensão paga pelo filho. Já Antonio, tem sua coragem enfatizada pelo autor através da narração de lutas que lhe renderam ferimentos graves, e que por vezes, quase o levaram a óbito.

As descrições das características e sensações dos personagens são feita por Tynan, de maneira pontuada e objetiva. Com adjetivos muito bem empregados, e com uma composição primorosa e detalhista da vida do toureiro, Tynan propõe uma identificação com o personagem que possibilita ao leitor a sensação de se tratar de uma pessoa conhecida.

Muitas vezes colocado como personagem - narrando em primeira pessoa – Tynan não empobrece o texto com as suas opiniões acerca do tão destemido toureiro, pelo contrário, elas só fazem enriquecer a personalidade já abastada de Antonio Ordóñez.

Para concluir, Tynan é extremamente descritivo nas cenas de tourada que fizeram Antonio ressurgir após três anos de consecutivas decadências nas lutas travadas. Fato que agravou-se ainda mais com o casamento de Antonio e Maria Del Carmen, pois segundo o autor “as esposas que gostam de seus maridos inteiros, são notoriamente más parceiras para os toureiros”. Ao final do texto, Tynan ressalta que a tourada com que Ordóñez coroou sua carreira foi uma em que não usou espada alguma. De forma leve e instigante - causando nos leitores a curiosidade sobre o desfecho da cena – Tynan conclui: “De alguma forma, achei apropriado que Ordóñez, o toureiro de bom gênio, fizesse história com o touro que não precisou matar”.

Sobre esportes # 3: Gabriel García Márquez vê o ciclismo, por Allan Sheid


O tricampeão revela os seus segredos

(matéria de julho de 1955, publicada em MÁRQUEZ, Gabriel García. Textos Andinos: obra jornalística 2 - 1954-1955. RJ: Record, 2006. p. 657-678). 

Uma viagem detalhista sobre as corridas de ciclismo. Este é o sentimento ao ler os capítulos da obra “O tricampeão releva seus segredos”.

A estrutura do texto dividida em subtítulos sequenciais, com pequenos trechos de descrição de cada momento vivido pelo atleta nas competições, desperta a curiosidade da próxima história que está por vir. Esse consumo de leitura satisfatória é o aspecto mais positivo da obra, por trazer a vontade de ler e ler sem pausas para um “cafézinho”.

Escrito em forma de depoimento, o tricampeão Ramón Hoyos peca em algumas repetições desnecessárias. Muitas vezes ele apela falando de suas condições desfavoráveis. O exagero repetido traz uma sensação de “pobre coitado”, estratégia utilizada talvez para ressaltar suas conquistas. Na minha visão isto torna o texto um pouco clichê, como todas as conhecidas histórias de superação.

As notas do redator são interessantes, primeiro porque ela freia o ímpeto de descobrir o que vai acontecer no próximo capítulo, e segundo por trazer à tona a entrevista com o tricampeão. Os depoimentos curtos e centrados se encaixam na nota do redator e não chegam a ser reveladores pelas declarações. Boa parte da entrevista já esta implícita no modo como Hoyos descreve as corridas que participou. A reportagem, no entanto, cria a noção de como era a vida do profissional e a visão de mundo, entrando em sintonia com os depoimentos das etapas do ciclista.

Outro aspecto a ser ressaltado, é a dificuldade do repórter em extrair do ciclista os afazeres ligados a vida sentimental. A segunda nota do redator é basicamente dedicada a descobrir os “casos amorosos” do atleta, ele é cercado de belas mulheres e em todas as fotos elas são apontadas por Hoyos como amigas. Nesse lapso de informação, entramos naquele velho dilema de até aonde o jornalismo tem o direito de invadir a privacidade do entrevistado, tratando-se nada mais de um jogo de interesse, no qual o jornalista tenta trazer ao público não só a imagem do personagem como atleta, mas também como ser humano.

Para quem gosta de boas histórias e esporte “O tricampeão revela seus segredos” é uma obra recomendada, funciona basicamente como um texto jornalístico narrativo, vivenciado pelos olhos de um atleta.

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Sobre esportes # 2: Gay Talese vê o boxe, por Cassio Deconto


O perdedor e Joe Louis: o rei na meia idade

(Em: TALESE, Gay. Aos olhos da multidão. RJ: Expressão e Cultura, 1973. P. 55-74 e 177-190, respectivamente. Ou em: TALESE, Gay. Fama & anonimato. SP: Companhia das Letras, 2004. P. 308-354 e 460-477, respec.)

Como já citado no subtítulo do livro Fama e Anonimato, Gay Talese é um mestre da reportagem. Opinião da qual concordo. Citarei duas reportagens deste livro nesta resenha: O Perdedor e Joe Louis: o rei na meia idade. Ambos tratam de esportistas, boxeadores, para ser mais exato. Talese descreve suas reportagens com riqueza de detalhes, mistura a literatura com estatísticas, história com depoimentos dos personagens.

O Perdedor narra a história de Floyd Patterson, um pugilista norte-americano em final de carreira. Após ser bicampeão mundial dos pesos pesados ele entra em decadência e começa a perder suas lutas. Patterson não desiste e continua treinando forte. Para isso, decide-se morar longe de sua esposa e filhos para não usufruir dos bens resultantes do boxe. Não utilizava da mordomia enquanto continuasse somente perdendo. Era uma questão de honra.

Joe Louis: o rei na meia idade especula sobre Joe Louis, visto como um dos grandes pugilistas americanos de todos os tempos. Louis se manteve defendendo títulos por doze anos. Talese conta a trajetória de sua vida após o término da carreira de lutador. Sócio de uma empresa de relações públicas para negros, jogador assíduo de golfe, um homem com boas relações entre as duas ex-esposas e a atual, mulher esta totalmente diferente das anteriores. “Advogada, vivaz e agradavelmente rechonchuda”. Enquanto as outras eram “madames gostosonas” e foram infelizes ao tentar segurar Louis em casa.

Gay Talese não é um escritor apenas para quem faz jornalismo ou é jornalista. É um autor indicado para qualquer tipo de leitor. Com uma narrativa rica, ótimos personagens e uma mistura homogênea entre jornalismo e literatura, é um dos grandes nomes da literatura no jornalismo. Aborta os mais diversos temas com uma bagagem de dar inveja aos mais experientes. É uma inspiração para qualquer estudante amante de jornalismo literário.

Sobre esportes # 1: Daniel Pearl vê corridas de demolição, por Jessica Stella

A partir dessa postagem, veremos resenhas dos alunos do sexto período de Jornalismo da UniBrasil sobre reportagens esportivas.


Corrida de demolição: Esporte sem lei ganha algumas regras

(de PEARL, Daniel. Cidadão do Mundo. SP: Landscape, 2003. P. 345-349).


Nesta matéria de 1994, Daniel Pearl conta a história de Leonard Pease, praticante de corridas de demolição, esporte no qual o vencedor é último carro “sobrevivente”. Descontente com a falta de disciplina, Pease cria a Associação Nacional de corrida de Demolição (NDDA), com a qual impõe regras para os circuitos e sonha com patrocínio, como em outras categorias de esportes.

Pease queria profissionalizar o esporte, mas as dificuldades para conquistar o empenho dos próprios organizadores e participantes sempre o frustrava.

Pearl conta a história de Pease e do esporte de forma magistral, citando a vontade do corredor em formalizar o esporte amado, fugindo aos meios “comuns”. Pearl conta os fatos, os pensamentos e desejos dos entrevistados sem parecer apenas um mero locutor. Ele mostra como se o próprio Pease estivesse contando.

Ao invés de apenas ser mais uma matéria, algo superficial visto de fora, Pearl consegue grande proximidade com os entrevistados e com o leitor, o que é um ponto forte do seu texto. Também pode ser um ponto fraco: ao leitor distraído talvez não seja tão simples reconhecer qual é a narração do jornalista e qual é a dos entrevistados.

De uma linguagem um tanto literária, é quase irreconhecível como matéria esportiva. Acostumamos a ver textos com resultados, posições e ranking nos esportes; quando surge algo diferente, é uma lição para fugir às regras e surpreender o leitor. 

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Por um texto experimental no Jornalismo, mas não maneirista

A obra de Caravaggio que serviu como inspiração para a aula sobre vencer os maneirismos.


Trata-se de A Dúvida de Tomé, pintada entre 1602 e 1603.

O que é mais importante naquela analogia é a objetividade. O pintor elimina o desnecessário, tira o efeito de grandeza que foi típico do cinquecentto, mas também amadurece em relação às estilizações que marcaram o maneirismo.

Ele mostra - com uma cena, com o número necessário de personagens (não mais!), com o gesto emblemático, sem fundos distrativos - a "notícia" que explica todo o contexto.

Para a época, Caravaggio soava até mesmo vulgar. Jesus e os apóstolos são retratados como miseráveis (uma empatia com o "leitor"), há emoção cinemática no quadro: é como se o grande artista fosse um documentarista que filmasse o clímax da situação enquanto acontecia. Parece que estamos diante de um "frame", de um pedaço da ação, algo que ainda terá continuidade. Tudo isso poderia parecer muito "barato" para quem estava acostumado a contemplar a ambição cósmica, em que até o movimento se congela pela grandiosidade, empreendida pelos últimos gênios do Renascimento, como Michelângelo, Leonardo e Tiziano.

No entanto, é o que nos basta para entender tudo. Não carecia, ao Caravaggio, montar um "grande cenário". Em parte por que ele estava a serviço da Contra-Reforma: a ideia era convencer as pessoas das virtudes do catolicismo tocando o coração delas. Sem rodeios, sem afetações. Com o perdão da palavra, uma lógica de publicidade.

Ou seja, sem dúvida precisamos encontrar uma voz original no jornalismo. Mas isso representa, a meu ver, superar também o maneirismo que surge da devoção. Precisamos superar o "jornalismo literário" imitativo do Gay Talese como os artistas que atualmente chamamos de "barrocos" venceram o maneirismo decorrente da adoração a Michelângelo (representado aqui pelo Tondo Doni, afresco "redondo", como diz o nome original, aí em cima: uma musculosa Sagrada Família pintada para a abastada família Doni).



Este: um quadro compreensivelmente conhecido como A Madona do Pescoço Comprido, de Parmigianino - uma das obras mais célebres do chamado maneirismo italiano.

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Obituário # 25: Laio, por Lúcio Woitovicz Júnior


A Fortaleza Voadora no Olho do Furacão

Antônio "Laio" Alves dos Santos


Um brincalhão que não dava sossego aos colegas. Antônio Alves dos Santos era conhecido como Laio e foi goleiro do Britânia, Savóia e Atlético Paranaense. Ele nasceu em Curitiba, no ano de 1918, e, antes mesmo de se tornar jogador de futebol foi sargento da Polícia Militar do Paraná.

Laio começou a carreira nos gramados na década de 30. Em 1941, foi contratado pelo Atlético, que tinha, na época, o lendário Caju como titular. Ficou na reserva por um bom tempo, mas aos poucos foi conquistando a torcida rubro-negra. Tinha como sua principal característica “voar” para fazer belas defesas, daí o apelido de “A Fortaleza Voadora”.

Durante a campanha de 1949, que deu o apelido de Furacão ao Atlético, Laio foi titular ao lado de jogadores como Waldomiro, Cireno, Jackson, entre outros. Foi campeão estadual naquele ano e em 43 e 45.

O ex-goleiro foi criado na região dos bairros Rebouças e Água Verde. Quando criança, Laio pulava uma cerca próximo a um rio, que passa nas proximidades do Estádio Joaquim Américo, para assistir aos jogos do Atlético de graça.

Visto pelos colegas como “sacana”, ele não perdoava ninguém nas viagens de ônibus da equipe. Não deixava os colegas dormirem sem antes atazanar a todos com todo tipo de brincadeira. Era unanimidade: sem o Laio, a viagem não prestava.

A Fortaleza Voadora decolou para o infinito no dia 6 de agosto de 2011, aos 93 anos, em Curitiba. 

quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Obituário # 24: Maria Eugênia Braz, por Jéssica Soares

Tinha apenas dois anos, novamente

Maria Eugênia Braz

Foi um exemplo de mãe para os filhos, que ao total somam sete de um único casamento. Gostava tanto de crianças que em sua juventude fazia disso o seu trabalho. Cuidava de bebês enquanto as mães iam para a roça. 

Era uma mulher que adorava música e sempre ia aos bailes de São Paulo, mas não gostava de brigar por namorados. Abriu mão de um italiano elegante que era assediado por outras mulheres.

Foi adotada legalmente aos 109 anos porque os parentes não davam mais o apoio que precisava. Maria Eugênia atravessou 540 km deitada dentro de um carro, de Campinas até Curitiba, para abraçar sua nova família.

Permaneceu no bairro Tatuquara com dona Lourdes Tangerino, a quem fazia questão de chamar de irmã. Recém-chegada ao lar, Maria Eugênia ganhou amigos, festa de aniversário, conforto e até uma nova religião. Católica desde pequena, converteu-se à Congregação Cristã, um esforço de Lourdes: "Mesmo debilitada, sempre que podíamos levávamos ela aos cultos".

Não se deixava abater pela doença e mesmo enfraquecida transbordava autoestima. Conversava com os novos netos ouvia atentamente quem aparecia para visitar. Vaidosa, não esquecia de uma touca de lã rosa que a aquecia nos dias de inverno, presente da sua irmã adotiva: "Dei a ela e não vou me desfazer. Guardarei de lembrança".

Dia 4 de agosto, aos 111 anos, de AVC.

Obituário # 23: Patrícia da Silva, por Allan Scheidt


Escada para o Paraíso

Patrícia da Silva


Guarani das Missões, Rio Grande do Sul, 10 de novembro de 1984: nascia Patricia da Silva. Uma menina que parece ter absorvido o carisma da primavera nos pampas. Desde pequena estava ligada às atividades artísticas tradicionais. Em 1995 foi  eleita a primeira prenda mirim da cidade, a flor do CTG.

Após concluir o ensino médio, Patricia e a família se mudaram para a cidade de Matelândia no oeste do Paraná. A nova vida começou com curso técnico na área de enfermagem e sete anos dedicados à profissão. Foi o tempo de apaixonar-se por Victor, com quem casou e teve Murilo.

A prenda também era fã de rock, particularmente pela canção Stairway to Heaven, do grupo inglês Led Zeppelin. E um dos trechos desta música representa bem a grande mudança na vida de Patricia, quando ela conheceu um novo amor:

Sim, há dois caminhos que você pode seguir
Mas na longa estrada
Há sempre tempo de mudar o caminho que você segue

Essa mudança no caminho ocorreu após três anos de convivência com Victor. Separou-se para mergulhar no romance com Jefferson, com quem conviveu por quatro anos. Seu novo marido tinha personalidade difícil: brigas no relacionamento e o envolvimento dele com drogas foram um prenúncio. A vida de Jefferson acabou no dia 2 de junho de 2011, vítima de homicídio.

Exatamente um mês depois, na fria noite de 2 de julho Patricia decidiu também subir as escadarias do paraíso. Deixou para trás Murilo, agora nos braços de Victor.

Pati, como era chamada por amigos e familiares, sempre esteve sob uma tempestade silenciosa, jamais transparecia a tristeza que lhe açoitava. Gostava muito de conversar e encontrar amigos, sair para dançar, brincar com seu filho. Viveu intensamente suas decisões, assumindo suas conseqüências. Quando cometeu suicídio, vitima da depressão, estava com 26 anos.



sexta-feira, 26 de agosto de 2011

Obituário # 22: Ercília Benício, por Márcia Stoppa


A primeira coisa que esqueceu foi do nome verdadeiro

Ercília Benício

Orcília Rodrigues nasceu em 4 setembro de 1932. Aos 13 anos fugiu de casa para casar com Izau Benício. Aproveitou a ocasião para mudar  o nome. “Orcília era muito feio”, dizia. Então no papel virou Ercília Rodrigues Benício. Teve um casal de filhos e seis netos.

Depois da morte do marido, em 1984, começou a ter lapsos de memória. “Colocava um lugar a mais na mesa e perguntava a que horas meu pai iria chegar”, lembra sua filha Maria Elizabeth.

Morava com  a filha e duas netas. Sua principal preocupação era o bem-estar delas. “Achava toda hora que ia morrer e que nunca veria minha filha Valéria se casar”.

Com o tempo, os esquecimentos se tornavam mais frequentes.Tomava café da manhã duas vezes, deixava a panela no fogo até o arroz queimar, a porta destrancada à noite.

Quando o filho de Valéria nasceu, sempre perguntava de quem era o bebê. E, quando a criança começava a chorar,seguia o barulho e se espantava ao ver o recém-nascido. Quando seu bisneto completou um mês, pegou o menino no colo e disse que poderia morrer em paz porque tinha conseguido realizar o sonho de ver sua neta casada. Dez meses depois, no dia das mães de 1998, Ercília faleceu.  

Obituário # 21: Lídia Rezende, por Larissa Soares


Disciplina e Odair José nunca são demais

Lídia Maria Rezende

Entre tintas, serragem, e cheiro forte de solvente, Lídia Maria passava tardes e mais tardes praticando artesanato.  Nem o câncer que venceu todos os tratamentos a impediu de entalhar, cortar, lixar, pintar.

Algumas dessas peças eram consideradas perfeitas pelos colecionadores. Outras, eram francamente horríveis e sem sentido, como diz Michele, sua filha. Ela ri ao contar que às vezes mentia sua opinião sobre o trabalho da mãe, que, no entanto, aos 57 anos, não se deixava enganar pelo elogio protocolar.

Na vizinhança, é fácil se ouvir falar da senhora que sempre estava cantando, com um lenço cor de creme envolvendo os cabelos cada vez mais roubados pela doença.

Vinda de Londrina com os pais muito nova, gastou boa parte dos anos de trabalho sendo professora de ensino fundamental. Duvidava que seus alunos se lembrassem de sua imagem, ou de suas broncas, mas a fama de “carrasca” se perpetuou. Julio Medeiros, vizinho da família enlutada, não esquece das duras palavras que ouviu quando foi aluno de Lídia, cujo lema era  “disciplina nunca é demais”.

Casada desde os 18, divagava que perdeu sua juventude mas mesmo assim era feliz. Mesmo quando se escondia do marido no quarto pra ouvir Odair José. Pouco antes de morrer lamentou que nunca teria netos, pois ninguém seria corajoso o suficiente para aguentar sua filha. Michele apenas ria da mãe e hoje confessa que ela tinha um pouco de razão.

Lídia não acreditava em nenhuma religião e que céu e inferno eram muito pouco pra ela. A criticidade irritava seu marido, que sempre fugia da discussão e abandonava a oficina onde a ajudava com as pinturas. Os vizinhos fofoqueiros também resmungavam, reprovando a posição da professora. Ela não ligava, dava um sorriso solto e lembrava que a cada um cabe a sua hora.

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Obituário # 20: Maria de Lourdes Torres, por Lucas Sarzi


Comer e ver novela

Maria de Lourdes Souza Torres

Ela nasceu em 26 de agosto de 1928, em Itapira (SP). Tinha outros sete irmãos. Dedicada, trabalhou desde jovem como auxiliar de enfermagem, mas sua vocação mesmo era ser dona de casa - algo que, de acordo com os relatos da família, fazia com muito gosto.

Casou-se com o imigrante português Antônio de Matos Torres aos 28 anos. O casamento durou quatro anos. O marido morreu e deixou duas filhas, Maria de Lourdes Torres e Regina Torres. 

Aos 40 anos, Maria de Lourdes se mudou para Curitiba com as duas filhas (a mais velha, Lourdes, já morava aqui um ano antes), onde trabalhou mais alguns anos antes de se aposentar. Ainda criou o neto, Fábio Torres de Quadros (filho de Lourdes), para que a filha trabalhasse.

Maria de Lourdes procurou representar a humildade por toda a vida. Apreciava conforto, apesar disso. Seus maiores prazeres eram comer (e considerava o restaurante Madaloso especialmente bom) e ver novelas.

Ela completou apenas o primeiro grau completo, mas impressionava pela esperteza e uma memória incomum.

Nos últimos dois anos e meio o diabetes dela piorou. Dona Maria acabou internada por várias vezes e problemas diferentes, todos causados pela doença. No dia 30 de julho de 2011, faleceou, vítima de uma parada cardiorrespiratória. 

Obituário # 19: Tia Laurinha, por Suzan Speltz


Por décadas reprimida, foi à rua buscar as crianças

Laurinda Josué Ferreira



Laurinda Josué Ferreira era mais conhecida como “Tia Laurinha” pelos vizinhos e amigos. Aposentada como empregada doméstica, mãe de três filhos, foi casada com Hernesto Ferreira por quase 26 anos, até ficar viúva em 2000. Morreu em casa, aos 78 anos, de doenças que lhe levaram à falência múltipla dos órgãos.

Após o falecimento de seu marido, tia Laurinha resolveu se dedicar a crianças e adolescentes carentes, já que todos os seus filhos já estavam casados e morando em suas próprias casas. Começou pedindo ajuda de seus vizinhos e parentes para coletar brinquedos, comida, roupas e até mesmo alguns móveis para doação.

Toda tarde ia para o centro da cidade levando uma sacola com bolacha, leite e outros alimentos, na certeza de encontrar jovens maltrapilhos. Em 2003, quatro dessas crianças, abandonadas por pais viciados em drogas, acabaram na casa de Laurinha. Mônica, Lucas, Eduardo e Gabriel passaram a ser os novos filhos da aposentada.

Hoje, Gabriel tem 17 anos, Lucas completou 22, Eduardo passa dos 19 e Mônica está a um ano de ser debutante. Os dois mais velhos moram com as namoradas e uma das filhas de Laurinda, Ketlin, chamou os dois adolescentes para morar com ela, seu marido e filhos.

O filho mais velho do casal, Junior, conta que um casamento opressor reprimiu a vocação social  de Laurinha na maior parte da sua vida. “Meu pai era muito ciumento com a mãe e queria ela sempre em casa pra fazer as coisas para ele”.

Júnior tem certeza que tia Laurinha nunca foi tão feliz como nos últimos anos.

* 5/6/1933
+ 29/7/2011

Obituário # 18: Cesar Augusto Druszcz, por Taiana Tavares


De cueca, não era rápido como um tigre
César Augusto Druszcz

César Augusto Druszcz, mais conhecido por Cezinha pelos amigos, faleceu no dia 22 de julho, um dia após completar 26 anos.
No caminho entre o trabalho e sua festa de aniversário, se desequilibrou da moto que conduzia e bateu na traseira de um caminhão.
O auxiliar de limpeza costumava chegar em casa animado nas sextas- feiras, mesmo após os dias mais duros de trabalho, gritando e buzinando para que sua mãe abrisse o portão.
A irmã Rubia Cristina lembra que ele atendia aos amigos no portão de casa usando apenas cueca. E ninguém mais se espantava com a excentricidade, acostumado com o bom humor de Cezinha.
Quando tinha 19 anos, Cezinha fez uma tatuagem de tigre, nas costas, às escondidas de sua mãe, a dona Leila. Toda noite seguia furtivamente até o quarto da sua irmã para que ela aplicasse pomada e colocasse a proteção no local da tatuagem.
O segredo durou até que um dia, distraído, foi receber amigo no portão no seu pouco traje de costume.
Cesar teve que sair correndo pela casa para não apanhar de sua mãe. Mas como a velocidade não era a mesma do felino que decorava suas costas, precisou de pomada, dessa vez, para sarar da surra.
Passagens pela polícia e desentendimentos em casa fizeram parte da sua vida. Mas a família nem toca no assunto. Deixou, além de Leila e Rúbia, o irmão Gustavo. 

Obituário # 17: Seu Quelé, por Vanuza Machado

Os braços de Quelé eram uma fábrica de chouriço

Clemente Reis Meurer


Pegar um filho no colo pode ser um gesto para um pai, mas para Renildo é a melhor lembrança que guarda de Clemente Reis Meurer.

Os familiares dizem que Clemente - ou Quelé, como era chamado em casa - não era a pessoa mais afável do mundo, mas em sua simplicidade era muito amoroso, além de manter o bom humor até dias antes de sua morte. "Por que vocês tiram tanto sangue? Abriram uma fábrica de chouriço?", brincou com a enfermeira que o acompanhava durante o tempo em que esteve internado.

Apesar de morar na região rural de Guaratuba, teve uma vida agitada. Passou pelas profissões de agricultor, professor, carpinteiro, mestre de obras e zootecnólogo, mas sempre achou um momento para ler a Bíblia e realizar as obrigações de ministro de eucaristia.

Clemente e Renildo tiveram uma fabriqueta de blocos que faliu com o golpe da poupança no governo Collor. O pai costumava dar bons conselhos. Por causa dele, Renildo não fechou um negócio que hoje classifica de “roubada”.

Um homem que nasceu no fim da segunda grande guerra não precisa fazer disso um motivo para sua vida ser um conflito. Na batalha contra o câncer, Clemente não foi um vencedor, mas deixou a lição de coragem e ensinou sua esposa e quatro filhos a passar pela luta com amor.

* 6 de janeiro de 1945
+ 21 de julho de 2011